Revisão Vida Ativa
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12 Mai, 2017 - 14:32

A nutrição, os nutricionistas e as marcas: do benefício ao conflito de interesses

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Nutricionistas e Congressos de nutrição patrocinados por marcas da indústria alimentar: está aberto o debate. Um artigo de opinião.

A nutrição, os nutricionistas e as marcas: do benefício ao conflito de interesses

Nos passados dias 4 e 5 de Maio, decorreu em Lisboa o Congresso de Nutrição e Alimentação promovido pela Associação Portuguesa dos Nutricionistas.

Desde então, as marcas presentes e o patrocínio dado pelas mesmas tem gerado polémica, uma vez que muitos produtos representados são considerados menos saudáveis.

Também a questão de muitos nutricionistas serem patrocinados por marcas da indústria alimentar e serem quase um intermédio comercial, levantou a questão do conflito de interesses.

Patrocínios, marcas e amostras

Após o evento, vieram a público algumas opiniões menos positivas por parte dos participantes do congresso em causa.

A essência da opinião prende-se com a presença de marcas a distribuir produtos menos saudáveis, destacando-se: refrigerantes, cereais de pequeno-almoço açucarados, bolachas, preparados em pó para sopas, pizzas, entre outros. A questão levantou-se: num congresso de nutrição, qual é a lógica de serem promovidos e dados a conhecer produtos como estes?

Qualquer pessoa que tenha estado envolvida em organização de eventos, nomeadamente congressos, sabe da necessidade de verbas para que o mesmo possa acontecer.

A existência de sponsorship torna-se quase obrigatória, curiosamente num congresso em que o tema fulcral se prende com sustentabilidade.

É um facto: as marcas dão dinheiro em troca da sua presença no evento, com a possibilidade de dar a conhecer os seus produtos. Na minha opinião, o branding teve mais impacto neste congresso do que muitas palestras sendo que os stands estiveram sempre ocupados pelos mais curiosos.

O papel do marketing

É certo que o marketing tem um papel fulcral no plano comercial e a indústria tem um papel de sustentabilidade económica em muitos estudos científicos.

Por exemplo, a indústria associada aos lacticínios não irá nunca patrocinar um estudo (e os estudos envolvem muitos fundos) que contrarie o benefício do leite para a saúde.

Em contrapartida, é expectável que uma marca pague para que sejam feitos estudos no sentido de averiguar a necessidade e benefícios dos seus produtos. A ausência ou falta de divulgação de resultados, com base em conflitos de interesses é que já se torna preocupante.

Comunicação oral de algumas marcas

Algumas dessas marcas, presentes no congresso, tiveram oportunidade de fazer uma comunicação oral alusiva ao produto alimentar que representava e com referência a estudos que sustentem o seu consumo.

Nestes casos, apela-se ao sentido crítico dos presentes que podem sempre colocar questões e expor a sua opinião, sempre que sustentada.

A frequência nessas palestras não é obrigatória e, ainda que com uma empresa como palestrante, há que encarar como uma oportunidade de conhecer os benefícios do produto e, em dúvida, averiguar os malefícios do mesmo.

Ainda que existam guidelines e regras básicas, o conceito de saudável pode ser relativo. Ora, sendo um congresso frequentado na sua maioria por nutricionistas, e dado o conhecimento para o qual estão sensibilizados e têm formação, a presença de algumas marcas não tem de ser descabida.

Ainda que sejam alimentos menos saudáveis, nós, nutricionistas, devemos ter conhecimento do que o mercado oferece. Assim como, por exemplo, bancários têm de se atualizar relativamente a questões da bolsa, economia, moeda e ofertas concorrentes, nós temos de saber e ter noção da oferta alimentar existente (que, por vezes, é complicado acompanhar).

A meu ver, o congresso deu essa mesma oportunidade. Antes de recomendar algo, sou da opinião que devemos experimentar e conhecer os alimentos, ainda que sejam menos saudáveis. Espírito crítico é fundamental para perceber se são produtos recomendáveis ou não.

Conhecimento geral acima de tudo

Além disso, e como referi, o conceito de saudável pode ser relativo. Num regime de emagrecimento poderei não incluir cereais de pequeno almoço açucarados e com chocolate, no entanto, se seguir um paciente com recusa alimentar e que só goste/consiga consumir este tipo de alimentos, convém que os conheça para melhor adequar a terapêutica nutricional.

Lá diz a frase: cada caso é um caso. Mais: pizza não é o prato saudável e mais recomendado, no entanto, é importante saber que existe a versão sem glúten. Para um doente celíaco que não tenha nenhuma outra contra-indicação, é uma informação útil para uma refeição pontual e diferente.

Resumindo, este tipo de eventos devem ser encarados como uma oportunidade para conhecer o que o mercado tem para oferecer: de bom e de mau. A questão ética deve estar inerente e a transparência também.

De salientar ainda que, por exemplo, uma marca muito conhecida de refrigerantes, presente no congresso e com versões sem açúcar dos seus produtos, distribuiu informação sobre as últimas evidências relativamente aos adoçantes e impacto na saúde. Neste caso, que seja considerada a componente de informação como uma mais-valia e que, acima de tudo, as pessoas possam fazer escolhas informadas.

Nutricionistas patrocinados pelas marcas: quais os limites?

Os nutricionistas são, ou devem ser, um exemplo de uma alimentação saudável. Recomendações feitas pelos mesmos nesse sentido têm, obviamente, maior credibilidade comparativamente com qualquer outro profissional saúde: nós estudámos nutrição e os alimentos são os nossos componentes de terapêutica.

Numa era em que as redes sociais assumem um papel importante na vida de qualquer pessoa, e dada a sua influência nas tendências de consumo, a busca de informação na área da nutrição é também feita, por parte do consumidor, através do instagram, facebook e blogs.

Muitos nutricionistas, dado o número de seguidores, assumem um papel mediático e são vistos pelas marcas como uma forma de chegar ao consumidor, dada a sua credibilidade e potencial de persuasão no que diz respeito à escolha dos produtos.

Ora, na minha opinião, esta é também uma forma de se ficar a conhecer os produtos, nomeadamente com a disponibilização de amostras. Ficaria muito dispendioso se, para experimentar os produtos tivéssemos sempre de os comprar e, no entanto, quando a pessoa chega a consulta e fala de alimento Y, convém saber do que se trata.

Deve ser salvaguardada a honestidade e acordar isso com as marcas, mas isso parte do sentido ético e pessoal de cada um: não vou recomendar um produto em que não acredito. Por outro lado, se for realmente uma boa escolha, é uma possibilidade.

A marca não deve ser o foco mas sim o produto, no sentido em que, se existirem produtos de marca branca de boa qualidade, não vejo problema em serem recomendados. O problema existe quando os patrocínios envolvem remuneração e, embora o dinheiro faça falta a todos, devemos salvaguardar a ética e conduta profissional.

O mesmo se aplica para o ganho de comissão pela venda de produtos, nomeadamente em consulta. A escolha final é da pessoa, que é a principal razão do nosso trabalho e é nela em quem devemos pensar, muito para além das comissões que vamos receber por vender determinado produto.

O dinheiro não é tudo, a saúde está em primeiro lugar e recomendar por recomendar sem se acreditar na qualidade não é, de todo, opção e aí sim falamos de conflito de interesses.

Em conclusão…

  • O nutricionista deve conhecer o mercado alimentar, seja para a vertente saudável ou não. Um congresso de nutrição e alimentação abrange tudo isso.
  • As marcas devem disponibilizar toda a informação relativa aos produtos, de forma a que se possam fazer recomendações/escolhas informadas.
  • A questão da indústria interferir negativamente em estudos científicos e nos seus resultados não é comparável com a dimensão de um congresso em que a indústria pode ter oportunidade de dar uma palestra, sendo também ocasião para os participantes criticarem de forma construtiva o que está em causa e obterem informação direta com as empresas ligadas ao ramo alimentar.
  • Os nutricionistas podem ser patrocinados por marcas desde que isso não obrigue a vendê-los sem uma total confiança na sua qualidade e benefício para as pessoas.
  • Os patrocínios dos nutricionistas podem ser encarados como uma mais-valia para as marcas mas também para os profissionais que podem experimentar os produtos de forma a ter uma opinião honesta dos mesmos e, nesse caso, cabe ao profissional impor os limites e acordar liberdade em expor a sua opinião publicamente, mesmo que não aprove o que testou.

Por último, bom senso é a base para tudo e liberdade de expressão é um direito que podemos e devemos pôr em prática: recomendar aquilo em que acreditamos ser sempre o melhor para o cliente/utente e recusar o conflito de interesses ao incentivar o consumo por troca de remuneração, só por esse mesmo motivo.

Artigo de opinião de:

Nutricionista estagiária à Ordem dos Nutricionistas Margarida Beja

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