Nutricionista Hugo Canelas
Nutricionista Hugo Canelas
08 Nov, 2019 - 11:08

The Game Changers: o que muda depois de assistir?

Nutricionista Hugo Canelas

O documentário da Netflix, “The Game Changers”, é rico em matéria vegetal,  mas pobre em ciência. Avaliamos algumas questões que merecem a sua atenção.

The Game Changers: o que muda depois de assistir?

A alimentação vegetariana tem vindo a ganhar popularidade, seja por questões de saúde, controlo de peso ou sustentabilidade do planeta. Com o aumento do conhecimento, a questão que domina quase todos os tópicos que envolvem as ciências da nutrição é se uma alimentação baseada em plantas é ou não mais saudável do que um padrão omnívoro.

Todos conhecemos alguém que optou por eliminar os produtos animais da dieta e por isso perderam peso, reduziram os níveis de colesterol e sentem-se com mais vitalidade. Assim sendo, parece que o documentário “The Game Changers” veio dar a machadada final na teoria de que para ser campeão, o atleta tem que seguir um padrão omnívoro. Mas não.

“The Game Changers”: de que fala o documentário produzido por James Cameron?

The Game Changers

No filme produzido por James Cameron – curiosamente o CEO da empresa Verdient Foods – são apresentados factos irrefutáveis de que o consumo de carne, peixe, leite e ovos influenciam desde a performance atlética até à função sexual e conduzem a uma morte precoce.

O filme é ainda narrado por James Wilks, um ex-lutador de MMA, que inicia a sua jornada após uma lesão e decide estudar sobre o impacto da alimentação na recuperação.

Ao longo do documentário são citados vários estudos e entrevistados tanto médicos como atletas e celebridades que não consomem produtos animais (atenção que as palavras vegan e vegetariano são cuidadosamente evitadas ao longo do filme), com o objetivo de apresentar os factos e levantar o sentido de consciência no espectador.

O problema é que apenas é apresentado um lado dos factos, muitas vezes recorrendo a estudos de validade duvidosa ou com amostras muito pequenas e comparações que deixariam qualquer aluno de ciências da natureza do ensino básico corado de vergonha. Em seguida exploramos o que está de errado com este documentário.

O cherry picking de ciência

“The Game Changers” começa com a menção a um “estudo” – vulgo narrativa de um arqueólogo – que alega que a densidade mineral óssea dos gladiadores romanos era maior porque eles seguiam uma dieta isenta de produtos animais, rica em hidratos de carbono complexos. Referir que a informação anterior não vem de um estudo pode parecer um preciosismo, mas na verdade serve para dar o mote para o tipo de informação que é escolhida ao longo do filme para “fundamentar” pontos de vista.

O problema é que a narrativa dos resultados é muitas vezes distorcida como, por exemplo, quando é citado que “no que diz respeito ao aumento de força e massa muscular, desde que seja garantida a quantidade adequada de aminoácidos, a fonte proteica é irrelevante”. Neste caso foi deixado de lado que, enquanto grupo, os atletas vegetarianos apresentam valores médios de creatina muscular mais baixos do que os omnívoros, facto bem documentado que pode influenciar a performance desportiva (1).

Este documentário – ou a forma como são apresentados e comentados os resultados – sofre de outra grande falácia, a extrapolação de dados. É referenciado um estudo que indica que o consumo de leite pode aumentar os níveis de estrogénio e diminuir os de testosterona em homens, estudo esse com 18 participantes (7 homens, 6 crianças e 5 mulheres), utilizando leite de vacas prenhas. Ora, se já é expectável que os níveis de estrogénio do produto sejam naturalmente superiores aos dos produtos comercializados, também se verificou uma diminuição temporária da secreção de testosterona, e não da concentração de testosterona sérica (2).

Mais tarde na narrativa é referido que a indústria alimentar financia estudos com o objetivo de “esconder a verdade” acerca dos benefícios da dieta isenta de plantas, confundindo o consumidor. Mais tarde ainda, e de forma algo sistemática ao longo do filme, é referido que o consumo de carne aumenta a inflamação e diminui o fluxo de sangue, num estudo financiado pela Hass Avocado Board, uma empresa fundada no sul da Califórnia pelo horticultor amador Rudolph Hass (3). É caso para dizer: quem tem telhados de vidro…

A presença de toxinas inerentes a todos os produtos animais

Embora os argumentos que defendem os efeitos benéficos da adoção de uma alimentação vegetariana sejam cada vez mais difíceis de refutar, deve ser esclarecido se estes benefícios se devem exclusivamente ao perfil nutricional da alimentação em si ou a todas as outras componentes dos estilos de vida dos adeptos deste tipo de dietas.

Aspetos “não-alimentares” geralmente adotados pelos adeptos destes padrões – como os hábitos tabágicos, consumo de álcool, atividade física e lazer – poderão ser fortes variáveis confundidoras aquando da análise de resultados.

Os benefícios encontrados na literatura científica relativamente à alimentação vegetariana não devem ser vistos à luz de alguns alimentos ou nutrientes isoladamente, mas como o resultado de uma presença constante, diversificada e sinérgica de vários produtos de origem vegetal, bem como de uma provável associação a um estilo de vida saudável. Ora ao longo do filme o espectador é constantemente bombardeado com nomes e siglas estranhas como aminas heterocíclicas, ferro heme, endotoxinas, AGE (produtos finais de glicação avançada) e TMAO (N-oxído de trimetilamina), e é levado a acreditar que estes compostos são exclusivos dos produtos animais, que aumentam os níveis de inflamação e que potenciam o aparecimento de doenças crónicas.

No fundo, e após assistir a este trecho, a ideia que fica é que o risco de desenvolver cancro coloretal com o consumo de carne processada é tão grande como o de desenvolver cancro do pulmão e fumar, quando a relação não é assim tão clara quanto isso. Fica também por referir que há técnicas para eliminar da carne as aminas heterocíclicas causadoras de cancro. Basta para isso marinar a carne em ambientes acídicos (por exemplo iogurte ou vinagre) e/ou ingeri-la com fontes de polifenois e antioxidantes como as frutas e vegetais para virtualmente eliminar o risco de formação de aminas.

Esqueça o talento, o treino e a genética. A dieta vai fazer de si um campeão

O filme faz um papel excelente em empurrar pelas gargantas dos consumidores abaixo uma panóplia de atletas de elite, mostrando-os a virar carros, a bater com marretas em pneus ou a correr ferverosamente. Tudo em nome de demonstrar que uma dieta isenta de produtos animais pode construir campeões em todos os estilos de desporto.

Embora impressionante, e por muito que os autores tentem dizer o contrário, a dieta é apenas uma peça da performance global. As experiências realizadas em 3 atletas, uma por um cardiologista e outra por um urologista, apresentam resultados favoráveis após o consumo de produtos de origem vegetal, ignorando por completo quaisquer variáveis como padrões de sono, fadiga muscular, stress, treino, estado de hidratação, consumo de bebidas alcoólicas e, talvez o mais importante de todos, a predisposição genética.

Por muito que se tente enaltecer o valor da nutrição na performance desportiva – e os benefícios estão à vista de todos, omnívoros ou não – a dieta ainda não substitui predisposição genética, treino e talento.

Em suma…

Elaborado por um grupo de pessoas que se sentem vítimas de preconceito pela sociedade, o documentário faz um ótimo papel na tentativa de pagar na mesma moeda, ostracizando os consumidores de produtos animais, apelando a sentimentos de saudosismo e culpa no consumidor.

No final das contas criam-se dois grupos distintos: os que consome e os que não consomem produtos de origem animal e não se chega à conclusão mais óbvia: inclua vegetais, frutas e legumes no seu dia-a-dia e os benefícios serão os mesmos, talvez maiores.

Afirmações como “a alface iceberg têm mais antioxidantes que o salmão e os ovos” são tão descabidas de sentido que é inevitável pensar “mas quem é que no seu perfeito juízo vais procurar antioxidantes ao salmão? É a mesma coisa que ir procurar Ómega-3 à alface iceberg.”

Se por um lado o consumo de produtos alimentares como fruta e hortícolas, leguminosas, cereais integrais e frutos gordos está associado a um menor risco de doenças crónicas e a uma maior longevidade, por outro são consumidos francamente menores valores de proteína de alto valor biológico, ácidos gordos polinsaturados, zinco, ferro, cálcio, vitamina D e vitamina B12.

Alguns dos potenciais riscos atribuídos à alimentação vegetariana incluem o aumento do risco de fratura óssea, anemia e, paradoxalmente, aumento do risco cardiovascular, associado ao aumento da homocisteina sérica.

A verdade é que, quando mal planeadas, as dietas vegetarianas podem resultar em efeitos negativos para a saúde. Para além de poder ser potencialmente rica em alimentos extremamente processados (com quantidades astronómicas de gordura, sal e calorias), a magnitude das possíveis carências nutricionais é variável de acordo com o grau de restrição, estando os veganos em especial risco, quando comparados com outros vegetarianos mais permissivos.

Estão já bem estabelecidas as carências em ácidos gordos polinsaturados da série 3, ferro, Vitamina D e vitamina B12, e, em menor escala, proteína e cálcio. Por último importa ressalvar que os benefícios descritos não são necessariamente exclusivos da alimentação vegetariana.

Padrões alimentares mais prudentes como a Dieta Mediterrânica, caracterizada pela ingestão moderada de peixe, o consumo de produtos lácteos e mesmo a ingestão ocasional de carne, estão associados a uma redução do peso e do risco de doença coronária crónica entre outras complicações. Para além disso, existem inconsistências nos resultados dos estudos analisados, especialmente no caso da incidência e mortalidade por cancro e a sua relação com a ingestão de carne.

A verdade é que, quando comparados com “não-vegetarianos” conscientes, os efeitos na mortalidade por todas as causas não são assim tão diferentes. Em alguns casos, dietas com consumo moderado de proteína animal podem promover melhorias na densidade mineral óssea e risco de fratura, massa livre de gordura, anemia e performance desportiva sem efeitos negativos para a saúde.

Se assistir ao filme com espirito crítico e a reflexão final for que o consumo de mais frutas e vegetais é essencial para toda a gente, já é um feito importante. Por outro lado, se o espetador for daqueles que começa a dieta e nota melhorias marcadas no peso e marcadores bioquímicos e atribui isso à isenção da ingestão de produtos animais – e não ao maior consumo de hortofrutícolas -, mais vale ficar afastado da televisão.

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